Em um artigo anterior, exploramos como a estratégia nasce da competição. Em qualquer mercado, o simples fato de haver outros players com objetivos semelhantes exige que as organizações desenvolvam um raciocínio estratégico. Mas a competição, por si só, não explica tudo. Ela é uma força externa. O que realmente molda o interior do pensamento estratégico — aquilo que pressiona as empresas por dentro — é a limitação de recursos.
É aqui que entra um conceito central da economia: a escassez. A estratégia só se torna necessária porque nenhuma organização, por maior ou mais ambiciosa que seja, opera com abundância absoluta. Existem sempre restrições. Algumas são óbvias, como orçamento ou capacidade produtiva. Outras são mais sutis, mas igualmente críticas: tempo, atenção, energia, foco, talento disponível. Por mais que algumas empresas tenham acesso a mais recursos que outras, todas estão lidando com algum tipo de restrição estrutural. E é justamente esse pano de fundo que torna o pensamento estratégico uma necessidade e não uma escolha.
Quem formalizou esse princípio de forma clara foi o economista Lionel Robbins, em sua clássica definição de 1932: “a economia é a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios escassos que têm usos alternativos.” O centro dessa formulação não está no dinheiro ou nos mercados, mas no fato de que qualquer agente — individual ou coletivo — enfrenta uma tensão permanente entre tudo o que gostaria de realizar e o que é possível realizar com os meios de que dispõe.
Essa é a base comum entre economia e estratégia: ambas partem da consciência de que os recursos são limitados e que a realidade impõe restrições — e não apenas possibilidades. É esse enquadramento que torna a estratégia uma ferramenta intelectual rigorosa, e não apenas um exercício de criatividade. A escassez fornece os contornos do problema. Ela funciona como o quadro que dá forma à tela: define o espaço em que a ação estratégica pode ser construída. Sem esse limite, o raciocínio se dissolve em ambição genérica.
É importante notar que escassez não significa precariedade. Trata-se, simplesmente, da constatação de que os recursos não são infinitos — mesmo quando são abundantes. Uma empresa pode ter caixa, estrutura, acesso a crédito e marcas fortes, e ainda assim enfrentar limites de outra ordem: capacidade de atenção, energia de liderança, alinhamento organizacional, complexidade operacional. A escassez não é apenas uma condição de fragilidade — ela é uma condição natural de operação.
Mais do que isso: ela é o que força a lucidez. Ela reduz a margem para dispersão. Ao lembrar que nem tudo pode ser feito ao mesmo tempo, nem com a mesma intensidade, a escassez funciona como um disciplinador silencioso. E é esse papel que vamos explorar ao longo do artigo: não a escassez como carência, mas como estrutura – em muitos contextos invisível – que molda o pensamento estratégico desde o início.
A ilusão da abundância
A escassez está sempre presente. Mas nem sempre é percebida. E, paradoxalmente, o maior risco não está nos recursos obviamente limitados — como dinheiro ou tempo —, mas naqueles que são usados todos os dias sem que se perceba que estão sendo consumidos. São os recursos invisíveis. E é justamente por serem invisíveis que, muitas vezes, escapam do radar de quem deveria estar pensando estrategicamente.
Quando falamos em escassez, pensamos quase sempre em orçamento. Dinheiro é o recurso mais mensurável, mais negociado, mais controlado. Em segundo lugar vem o tempo — especialmente o tempo da equipe ou dos líderes — que também costuma estar sob algum tipo de acompanhamento, seja em agendas, entregas ou prazos. Mas a realidade de uma organização é moldada por muitos outros recursos, igualmente finitos, que raramente são tratados como tal. Eles não aparecem nas planilhas, nem nas alocações formais, mas estão sendo consumidos o tempo inteiro — e, o mais grave, sem que se perceba que isso tem um custo.
É por isso que vale propor uma definição mais precisa: recursos estratégicos são unidades de valor que podem ser empregadas de diferentes formas e, por isso, possuem custo de oportunidade real.
Sua natureza pode ser tangível ou intangível, mas o critério fundamental é este: eles podem ser, direta ou indiretamente, convertidos em valor econômico.
E quando o recurso é invisível — ou seja, quando ele não é reconhecido como escasso — o custo da má alocação cresce silenciosamente até se tornar, lá na frente, um problema evidente.
Veja, por exemplo, o caso da atenção do cliente no contexto de marketing e comunicação. Cada campanha, cada iniciativa, cada nova história que uma marca tenta contar está disputando esse recurso escasso. A atenção não é infinita, e o público não está esperando mais estímulo — está tentando sobreviver a ele. Quando a marca tenta comunicar tudo ao mesmo tempo, em múltiplas frentes e com várias promessas, ela não está sendo ambiciosa — está sendo ineficiente. O recurso foi mal alocado, e o retorno diminui. Menos impacto, menos lembrança, menos conversão.
Em outro campo, pense no uso de uma capability específica — por exemplo, um time de P&D altamente capacitado. Essa capacidade, que parece abundante dentro da área, é na verdade um recurso escasso no nível estratégico. A organização pode empregá-la para refinar um produto existente, explorar uma nova tecnologia ou entrar em uma categoria inédita. Mas não pode fazer tudo ao mesmo tempo. Direcionar essa capability para uma frente significa deixar outras potenciais frentes em espera — e, portanto, a forma como esse recurso é alocado determina diretamente onde se pode avançar.
Ou considere a reputação, no contexto da relação com investidores. Em certos estágios de uma empresa, especialmente quando ela ainda depende de capital externo, reputação é um recurso que abre portas, convence, atrai. É o ativo intangível que antecipa valor futuro. Mas é também um recurso que se gasta. A cada meta descumprida, a cada projeção exagerada, a cada silêncio em momento crítico, um pouco dessa confiança evaporam. E quando se precisa dela de novo — para uma nova rodada, uma expansão, uma recuperação —, talvez ela não esteja mais ali.
Esses são apenas três exemplos — mas são suficientes para mostrar que a escassez mais perigosa não é a visível, e sim a que passa despercebida. Quando o recurso não é reconhecido como tal, ele é mal tratado. Quando o custo de oportunidade não é percebido, as decisões perdem critério. E quando o valor potencial de algo não é claro, seu desperdício não gera alarme — mas gera perda de valor real, ainda que atrasada.
Pensar estrategicamente, nesse caso, é também aprender a ver. Tornar visíveis os recursos que de fato sustentam o avanço. E tratá-los com o mesmo cuidado com que se trata dinheiro, tempo ou margem. Porque, no fim das contas, é disso que se trata: todos esses recursos — atenção, capacidade, reputação — podem virar dinheiro. Mas se forem mal usados, só viram ruído, cansaço e perda de oportunidade.
A escassez estruturante
Até aqui, vimos como a escassez é o que torna a estratégia necessária. Mas ela não cumpre apenas esse papel inicial. A escassez também tem uma função mais profunda e permanente: ela organiza o raciocínio. Quando percebida com clareza, ela não paralisa — ela estrutura.
No dia a dia das organizações, há uma tendência natural ao acúmulo de possibilidades. Produtos que poderiam ser lançados. Mercados que poderiam ser explorados. Tecnologias que poderiam ser integradas. Frentes que parecem promissoras, pessoas que têm boas ideias, oportunidades que aparecem. Sem um limite claro — sem uma borda visível — esse excesso de possibilidades se transforma em dispersão. E a organização passa a operar como um organismo inquieto, mas desorientado.
É nesse ponto que a escassez cumpre seu papel mais essencial: ela impõe contorno. Ela força uma triagem. Quando se reconhece que o recurso — seja ele qual for — não dá para tudo, o pensamento se reorganiza. A pergunta muda: deixa de ser “o que mais podemos fazer?” e passa a ser “onde faz mais sentido atuar com o que temos?”. Essa simples mudança de pergunta reestrutura todo o processo mental.
A escassez, nesse sentido, funciona como um editor invisível: corta excessos, afunila hipóteses, exige clareza. Ao impor um limite ao possível, ela dá forma àquilo que é desejável e, principalmente, executável. E isso é ainda mais relevante quando lidamos com recursos invisíveis, como mostramos anteriormente: atenção do mercado, capabilities técnicas, reputação acumulada. Tudo isso está sendo consumido continuamente, e pensar estrategicamente significa saber onde concentrar esse consumo.
O mundo empresarial fala muito sobre ambição, visão de futuro, metas ousadas. Mas o que torna uma estratégia possível não é o tamanho do sonho — é a clareza sobre o que se tem à disposição para persegui-lo. É por isso que o pensamento estratégico não começa com o que se quer, mas com o que se tem. E o que se tem é sempre menos do que seria desejável. Essa é a regra do jogo. E não é um problema — é a estrutura que dá forma à estratégia.
Reconhecer a escassez — de recursos financeiros, de atenção, de capacidade, de tempo, de margem para errar — é o que permite que o raciocínio estratégico exista. Quando tudo parece possível, nada se define. Quando os limites são aceitos, as prioridades emergem. A escassez não reduz o pensamento — ela o afia.
Mais do que isso: boa parte do fracasso estratégico não vem da falta de ambição, mas da incapacidade de enxergar o que está sendo gasto. Muitos recursos decisivos — como atenção do cliente, capacidade técnica, reputação institucional — não estão registrados nos relatórios. Mas são empregados todos os dias. E como não são visíveis, muitas vezes são usados sem critério, desperdiçados ou aplicados em frentes que não trazem retorno.
Reconhecer que estratégia é invisível é também um exercício de tornar visíveis os limites reais. Não para se acomodar, mas para pensar com mais lucidez. Não para desistir, mas para entender de onde se parte, e com o que se conta. Porque nenhuma empresa avança de verdade sem reconhecer que não pode tudo — e que é justamente por isso que precisa escolher bem.